sábado, 19 de janeiro de 2013

Harmonização

O que dizem os especialistas?

Segundo o Sommelier Guilherme Correa:

Dê corpo ao corpo

O primeiro preceito que devemos levar em consideração para uma harmonização vinho-alimento bem lograda é o de que devemos buscar no vinho um nível de estrutura semelhante ao do prato, e vice-versa.
Por estrutura do vinho entende-se o seu corpo, o somatório do álcool com todos os componentes não voláteis do vinho, como ácidos fixos, minerais, polifenóis, glicerol, substâncias nitrogenadas, pectinas, etc., que fazem com que os nossos órgãos de sentido percebam tatilmente um vinho mais pesado, encorpado e estruturado, ou ao contrário, mais leve, delicado, fraco de corpo. A estrutura de um prato depende por sua vez da composição e do número dos ingredientes, que determinam uma maior ou menor complexidade e consistência gustativa.

Por mais óbvia que pareça esta nossa primeira premissa da ciência enogastronômica, muitas vezes ela é negligenciada, gerando frustrações que poderiam ser facilmente evitadas. Um exemplo claro da incongruência corpo do vinho com corpo do prato é a do bacalhau com Vinho Verde. O bacalhau, por sofrer um processo de secagem com sal, concentra na sua carne uma incrível potência de sabor, à qual os frescos brancos do Minho, pelos seus atributos de delicadeza, não conseguem fazer frente.
Façam então o teste de aumentar a estrutura do vinho, escolhendo, por exemplo, um branco também português, de uva Encruzado e fermentado em carvalho, como o super premiado Encruzado Quinta dos Roques, e confirmaremos empiricamente (e hedonísticamente) como o bacalhau agradece e o vinho engrandece, nessa nova harmonia.

Regulando o Volume dos Aromas

Prosseguindo com o elenco das características do alimento que devem entrar em concordância quantitativa - e não em contraposição - com as características do vinho, abordaremos nestas linhas o que denominamos de “intensidade olfativa”.  De acordo com o emprego de ervas e bulbos aromáticos (cebola, alho, alho-porró, etc.), especiarias e condimentos, um prato ou alimento possuirá um nível de perceptibilidade dos seus aromas tanto no nariz (olfação direta), como quando está na boca (retro-olfação ou olfação indireta), que deverá ser equiparado ao nível de perceptibilidade dos aromas do vinho, quantificados também na fase direta e indireta.
Dito de outra forma, as intensidades olfativas devem estar nos mesmos patamares para que nenhum dos dois, prato e vinho, se sobrepujem quando apreciados conjuntamente.


Trazendo a teoria à prova, tomamos como exemplo o mesmo alimento, o presunto cru, mas de elaboração e de características gusto-olfativas bem diferentes: um delicadíssimo San Daniele italiano e um poderoso jamón Pata Negra espanhol. Fica patente que precisamos trabalhar com vinhos de volumes olfativos diversos, e então um branco fresco e agradavelmente delicado, como um Pinot Grigio do norte da Itália, do Albino Armani, seria perfeito para o San Daniele (delicioso também sobre fatias de melão), ou em contraposição, partiríamos para os perfumes intensos e complexos de um maduro vinho de Castilla, como o Ercavio Limited Reserve, fazendo frente à pujança aromática do sublime presunto ibérico.

Ao Doce, Um Néctar!

Finalizando com as características do alimento que devem concordar com as características do vinho, abordaremos desta feita a doçura. Conceituando primeiramente a doçura do vinho, temos que tanto mais doce ele será quanto maior for o resíduo de açúcar presente, seja este natural do suco da uva supermadura nos grandes vinhos doces, seja adicionado sob a forma de suco concentrado/retificado após a fermentação, no caso dos vinhos doces simples. Obviamente, um prato é mais ou menos doce dependendo da quantidade de açúcares adicionados, ou então de elementos ricos em açúcar. A regra básica que devemos respeitar é de que o nível de doçura percebido no prato deve concordar com o nível de doçura percebido no vinho, e vice-versa.

Vamos aos testes: aproveite quando chegarem as festas de fim-de-ano e sinta porque um bom Asti Spumante, como o do produtor Araldica, é o acompanhamento perfeito para o tradicional panettone (níveis de doçura equivalentes), mas com uma doce torta natalina de tâmaras, amêndoas e mel, ele já aparenta estranhamente seco e magro. Nada que um excepcional Jerez Pedro Ximénez, elaborado com as uvas homônimas secas ao sol, não consiga resolver com sua dulcíssima untuosidade, que funde na boca como um chocolate extra-puro. A tradicionalíssima bodega El Maestro Sierra produz alguns dos mais fantásticos PX da região, desde 1830.

Dito de outra forma, as intensidades olfativas devem estar nos mesmos patamares para que nenhum dos dois, prato e vinho, se sobrepujem quando apreciados conjuntamente.

Confrontando a Suculência

Visto as sensações do vinho e do alimento que devem entrar em concordância, a partir de agora estaremos analisando as sensações que devem se contrapor, de forma que não haja um efeito sinérgico negativo entre algum elemento do vinho com outro do prato que o acompanha.

Começaremos analisando a suculência, uma sensação tátil relacionada com a presença de líquidos na cavidade oral.

A suculência pode ser intrínseca do alimento, como numa carne grelhada malpassada, pode ser também uma suculência por líquidos adicionados durante a preparação/cozimento, como nas carnes braseadas, cozidas ou sopas, ou pode finalmente ser uma suculência induzida, no caso dos alimentos pobres em sucos internos, mas que despertam uma intensa e durável salivação para a sua embebição e sucessiva deglutição, exatamente como ocorre ao colocarmos um pedaço de queijo Grana Padano na boca.


É obvio que o álcool do vinho, com suas propriedades desidratantes (hidrófilo), seria o principal elemento a contrapor às preparações ou alimentos com alta percepção de suculência, embora os taninos dos tintos, agindo por princípios diversos do álcool e que iremos abordar em breve, também cumpram esse papel.

Por que o grande Amarone do Michele Castellani, com seus mais de 15º alcoólicos, vai tão bem com queijo Grana? Por que a tanicidade e a alcoolicidade dos Malbecs do Luigi Bosca enxugam de maneira tão perfeita um “prime rib” grelhado? Ou por que o Sauvignon Blanc Reserve Expresión de 14ºGL do Villard, oriundo do fresco Vale de Casablanca no Chile, deixa a boca tão limpa e agradável quando acompanha suculentas ostras “in natura”? Como é bom objetivar a enogastronomia!

Amortecendo os Efeitos da Untuosidade

A untuosidade, para fins da ciência enogastronômica, é uma sensação tátil governada pela presença de um componente oleoso na cavidade bucal, derivado principalmente da utilização de óleos vegetais - em particular do óleo de oliva - na elaboração e condimentação de um prato.

A fluidez dos óleos gera uma sensação escorregadia na boca, que deve ser contraposta no vinho à sua tanicidade, pois os taninos dos tintos têm o poder de quebrar a capacidade de lubrificação da saliva, ao precipitar uma proteína denominada mucina. A adstringência ou secura gerada pelos taninos de um vinho se adéquam perfeitamente a uma receita rica em untuosidade, que também pode ser originada por um método de cocção longo e em calor úmido (estufados, braseados), capaz de dissolver as gorduras sólidas das carnes no líquido/molho onde se procede ao cozimento.

Não é puramente regional o fato de que o riquíssimo “cassoulet” francês vá tão bem com um grande vinho de Madiran, como o célebre Château Montus, mas a competência tânica da uva Tannat amortece e enxuga as gorduras das lingüiças, da pele do porco e do confit de pato, derretidos no feijão branco do “cassoulet”. Vale à pena testar também um grande Tannat do Novo Mundo, como o Tannat Parcela Única B6 da vinícola Bouza, um uruguaio de alta patente.


E quando estivermos tratando da untuosidade de uma saladinha de frutos do mar, regada com um belo azeite extra-virgem, devemos buscar vinhos tânicos? Claro que neste caso abriremos mão dos taninos (catastróficos com o iodo marinho) e pensaremos no álcool, que age de forma praticamente similar. Saca-rolhas em mão? Um curiosíssimo branco da uva Picapoll, elaborado na região da Catalunha pelo produtor Masies D’Avinyo, com seus 13GL.

Combatendo a gordura

Para fins da enogastronomia, a untuosidade - que abordamos antes - e a gordura sólida requerem elementos totalmente diferentes nos vinhos para uma perfeita harmonização. Não obstante sejam ambas as sensações táteis decorrentes da presença de lipídios em um alimento ou preparação, a gordura sólida, de origem, sobretudo animal (banha, toucinho, manteiga, embutidos, queijos, gema de ovo), gera na boca uma sensação de emplastramento, entendida também como uma sensação de maciez, quase uma tendência ao doce.

Ao contrário da untuosidade, agora não precisaremos mais de elementos para enxugar a boca, mas sim de elementos que estimulem a salivação para emulsionar e conseqüentemente diluir a gordura, como a acidez e a sapidez (salinidade mineral), ou então da efervescência do gás carbônico, também de boa ação desengordurante. Vamos esquecer a dieta momentaneamente e nos deliciar com os novos testes?

Prestem atenção como sobra suculência na boca ao harmonizarmos um espumante com caviar sobre torradinhas. Coloque uma fatia de manteiga gelada (derretida é untuosidade e não gordura sólida) sob o caviar e perceba como ela interage, amortece e é emulsionada por um espumante deliciosamente rico em acidez como o Ferrari Maximum Brut, um ícone da Itália.

Os amantes de Baco precisam recorrer sempre a uma caipirinha para limpar a gordura patrocinada pelos pertences de uma feijoada? Sem desmerecer a brasileiríssima batida, mas a acidez natural da casta Baga em um Bairrada tinto da Casa de Saima, aliada a sua estrutura de sabor, sublimam o nosso prato mais emblemático. Finalmente, quando o alimento pedir um tinto de grande estatura e maturidade, que normalmente não conta com boa acidez ou efervescência, podemos recorrer à sua sapidez, como no caso dos tintos fortificados de regiões quentes. Fica fácil entendermos essa premissa ao degustarmos um roquefort, queijo riquíssimo em sabor e com alto teor de gorduras natural do leite de ovelha, que nos leva ao céu junto a um potente e sápido Porto Late Bottled Vintage (LBV), como o Warre’s da safra 1999.

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