Enoturismo no Piemonte

O brilho natural do Piemonte! (por Jorge Lucki)

Vila de Barolo e seus vinhedos espalhados no interior da cidade

Já se foi o tempo em que vinhedos eram apenas paisagens agrícolas. O crescente interesse por vinho que se nota mundo afora tem incrementado sobremaneira o enoturismo, prática que se tornou ferramenta importante para produtores promoverem seus rótulos. Entre tantos lugares para visitar, a gastronomia também é levada em consideração, afinal o apreciador de vinhos sabe dar valor e vai atrás das coisas boas da vida.

Raros são os lugares em que a natureza foi tão pródiga, reunindo paisagem belíssima, vinhos fantásticos e culinária rica, como no Piemonte, terra dos barolos, barbarescos e do "tartufo bianco", a rara trufa branca. Caprichos da natureza. São, acima de tudo, produtos de exceção. No caso dos vinhos, eu os considero intelectuais, refinados, diferenciados. Não são fáceis de entender à primeira vista e podem sair em desvantagem diante daqueles óbvios, demasiadamente opulentos e pesados. Necessitam de alguma atenção inicial, mas depois encantam, em particular ao acompanhar uma refeição. É uma característica derivada da nebbiolo, casta com a qual são produzidos com exclusividade e que só se expressa bem nas condições naturais de geografia, clima e solo locais, fatores irreproduzíveis.

Vale o mesmo para o tartufo bianco. Há trufas em alguns outros cantos do planeta, pretas sobretudo, e até brancas, mas nenhuma tem aroma e sabor tão intensos e instigantes. Tais atributos precisam ser valorizados, razão pela qual devem compor pratos delicados, enriquecendo a receita, mas não sendo ofuscada por ela. A maneira tradicional e mais recomendada de utilizá-la não é na preparação da comida, mas servi-la na frente do cliente em finas lâminas cortadas com um apetrecho próprio, o "mandolin", espécie de ralador com apenas uma folha cortante.

Em termos de pratos, a sugestão são risotos e massas sem molhos ("al burro", na manteiga), nhoques, polentas, fondutas (mistura de queijos fundidos) e, talvez o melhor de todos, simples ovos estrelados. Para os carnívoros, a pedida é um tartar, preparado com carne de boi crua, que tem textura pastosa e paladar leve. Nada substitui a trufa branca fresca, nem mesmo - qualquer tentativa de comparação é enganosa - utilizar pasta, manteiga ou óleo tartufado nas receitas. Especialistas, inclusive, condenam a grande maioria desses produtos industrializados.

O cuidado em preservar as virtudes do tartufo deve ser estendido ao vinho que acompanhará o prato. Ainda não é hora de barolos e barbarescos. Esses devem ser pacientemente deixados para escoltar uma comida mais consistente, que, sem dúvida, virá na sequência. Até chegar esse momento, nada melhor que um dos belos brancos de que o Piemonte apropriadamente dispõe: o notório Gavi, o aromático e macio Roero Arneis e os produzidos com as variedades pouco conhecidas timorasso e favorita, bem interessantes.

Os barolos e barbarescos devem ser reservados para outra especialidade gastronômica do Piemonte, os assados. Ricos em tanino e vivos em acidez, tudo em perfeito equilíbrio (nos bons produtores), o que lhes garante longevidade, são tintos que fazem ótima parceria com o sabor forte e a fibrosidade das carnes, em particular caças e cabritos. Os vegetarianos, porém, não precisam se abster de provar esses tintos tão especiais. Eles vão bem, compõem e até dão nome a um prato especial da região, o risoto al barolo.

Embora barolos e barbarescos sejam os vinhos tintos piemonteses mais aclamados, outros rótulos têm lugar de destaque no cenário vinícola local. A começar pelo Nebbiolo d'Alba, produzido com a mesma uva dos nobres congêneres. Se não tem a mesma complexidade, é um bom primeiro passo para chegar neles. Mantém as características varietais e necessita de menos tempo para ser consumido.

Outrora desprezada, a uva barbera é uma variedade nativa do Piemonte que vem ganhando prestígio nos últimos 15 anos. Era a mais cultivada na região e, empregada em vinhos correntes, ninguém lhe dava grande atenção. Foi um produtor local, Giacomo Bologna, quem acreditou que aquela casta, com pouco tanino e acidez pronunciada, poderia render um bom vinho. Diminuindo drasticamente o rendimento das parreiras, conseguiu controlar a acidez e ganhar um sabor frutado exuberante, contornado por taninos leves e agradáveis. Contrariou ainda as tradições piemontesas, fazendo várias experiências em barris de carvalho, concluindo que o estágio em madeira nova acrescentava riqueza e profundidade. O resultado foi lançado em 1982 com o nome de Bricco dell'Ucellone, que entrou para a galeria dos grandes vinhos italianos e atraiu todos os produtores da zona. É bem versátil à mesa, especialmente com pratos ricos em molho de tomate, como massas, mas vai também com carnes ensopadas.

O trio de tintos, cada um em sua hora, é completado pelo Dolcetto, também denominação de uma uva local, mas que, ao contrário do que o nome sugere, de doce não tem nada. É um vinho seco, mais leve que os demais tintos da região, muito utilizado pelos piemonteses para iniciar a refeição, particularmente com antepastos.

Nenhum italiano, por outro lado, termina uma refeição sem sobremesa, e o Piemonte também tem uma especialidade para as que são ali comumente servidas, a panna cotta e as tortas de maçã e de avelãs. É o Moscato, vinho branco aromático, adocicado, levemente frisante e pouco alcoólico, elaborado com a uva de mesmo nome. Com mais borbulhas, mas dentro do mesmo estilo, está o conhecido Asti Spumante.

Roteiro

Ainda que Turim, capital do Piemonte, tenha seu lado turístico, o que existe de melhor mesmo no território são as regiões vinícolas, particularmente as situadas em torno das cidades de Asti e Alba. Na primeira reina a uva barbera, com suas duas DOC (Denominazione d'Origine Controllata), Barbera d'Asti e Barbera del Monferrato. Dentro de seus limites, ainda, estão as zonas regulamentadas de produção do Asti versão espumante, do Moscato d'Asti e de um dos mais conhecidos brancos da região, o Gavi, elaborado integralmente com uma uva local, a cortese.

Alba, por sua vez, é o centro nervoso do Langhe, região da nebbiolo por excelência - o nome da uva vem de "nebbia", névoa que no outono cobre suas colinas repletas de vinhedos - e de cujo solo sai a maior parte do tão raro e desejado tartufo bianco. Se é certo que lá é o berço da nebbiolo, não poderiam vir de outro lugar seus dois vinhos mais prestigiados, o Barolo e o Barbaresco.

Apesar de serem elaborados a partir da mesma casta, barolos e barbarescos apresentam características distintas. O primeiro tem um estilo mais austero e robusto e com taninos mais pronunciados do que o segundo, atributos que o vocabulário do vinho "ousa" denominar masculino e feminino, respectivamente. Barolo e Barbaresco são áreas diferentes, perfeitamente delimitadas - DOCG, Denominazione di Origine Controllata e Garantita -, distantes não mais do que 15 quilômetros entre si. A despeito da pouca distância que as separa, há questões climáticas, geográficas e de solo particulares a cada uma. É, numa variedade tão sensível e caprichosa como a nebbiolo, suficiente para resultar nas diferenças que os dois rótulos apresentam.

Não param por aí as excentricidades da nebbiolo. Ela necessita de condições ideais de insolação para atingir os níveis de maturação desejados para compor barolos e barbarescos. Isso se consegue com vinhedos expostos a sul e sudeste. Em quaisquer outras exposições a colheita ou é direcionada para vinhos com a denominação Nebbiolo d'Alba, ou o produtor prefere plantar outras uvas tintas, caso da dolcetto e da barbera, que, no Langhe, originarão os rótulos Dolcetto d'Alba e Barbera d'Alba.

Roero, região que faz divisa com o norte de Langhe e dela é separada pelo Rio Tanaro, também tem seu lugar no meio vinícola do Piemonte. Além de ter o branco Arneis como diferencial, ainda propõe tintos honestos produzidos majoritariamente com nebbiolo e contribui com áreas de vinhedo que entram na denominação Barbera d'Alba.

As quatro principais regiões vinícolas piemontesas - Langhe, Asti, Monferrato e Roero - não são tão distantes que justifique ficar mudando de hotel a toda hora. É possível fincar âncora em qualquer lugar do agrado e fazer todo o roteiro de carro a partir dele. Além do que, por mais interessante que seja o destino a ser visitado, ele será simples pretexto para rodar pelas estradinhas que margeiam e dão vista para os vinhedos implantados nas encostas. O único senão é o retorno à noite depois de lautos jantares, com tantas opções de restaurantes espalhados por todas elas. E é uma pena deixar de ir a alguns dos elegidos, apenas porque são um pouco mais longe. De qualquer forma, não há nenhuma cidade que concentre um número representativo de restaurantes que justifique se hospedar nela.

Come-se divinamente no Piemonte, mas o ápice é mesmo na época das trufas brancas. Isto se dá num período bastante limitado, normalmente de meados de setembro até a primeira quinzena de dezembro. Em outubro, mês mais fértil, acontece no centro de Alba a Fiera Internazionale del Tartufo Bianco, onde uma leva de tartufaios, como são chamados os caçadores de trufas - com a indispensável ajuda de cachorros treinados -, coloca à venda o que colheu. Vale pela festa e é um bom motivo para conhecer melhor a cidade, mas, segundo me informaram produtores de vinho locais, não é o melhor lugar para comprar. Nem todas as trufas são da mesma qualidade e é preciso experiência para diferenciá-las. Por recomendação, e atesto, para comprar no varejo a indicação é a Tartufi Morra, na Piazza Pertinace 2, em Alba.

A temporada de tartufo bianco tem ainda como (imenso) atrativo a mais o fato de coincidir com a fase de colheita das uvas. Além do ambiente que reina, há a paisagem multicolorida, com a folhagem verde já assumindo tons avermelhados e amarelos. Imperdível. Já conseguir visitas personalizadas nessa época não é tão fácil. O Piemonte, regra geral, se caracteriza por propriedades familiares de pequeno porte, em que os donos fazem ou acompanham tudo, da colheita à vinificação. São, em todo caso, muito hospitaleiros, podendo, em certas situações, com alguma boa indicação (do importador no Brasil ou mesmo do hotel onde se fica hospedado), receber visitantes. Isso tem que ser previsto com antecedência.

Vai em seguida um guia atualizado do que vivenciei de melhor nesses quase ininterruptos 20 anos de visita à região.

Onde ficar:

• Palas Cerequio: Recém-inaugurado, é um hotel boutique, com apenas nove suítes, mais uma "vip", luxuosas e com design avançado, localizado no meio de um dos mais celebrados vinhedos de Barolo. Pertence ao prestigiado produtor Michele Chiarlo e foi construído a partir da restauração de parte de uma antiga construção. No subsolo, abriga ainda um spa e uma adega com teto abobadado,onde se podem degustar vinhos de safras antigas. Um sonho.
• Relais San Maurizio: Pertence à rede Relais & Château, tendo todo o luxo que hotéis do gênero podem oferecer, spa muito bem equipado, inclusive. Ocupa as instalações de um antigo monastério finamente restaurado. Conta com um ótimo restaurante, o Guido da Costigliole, uma tradição de 50 anos na região, conhecido pela comida e pela excelente carta de vinhos. Informe-se sobre os quartos: pelo mesmo preço, nem todos estão à altura do que o hotel aparenta propor. Um pouco afastado.
• Albergo dell'Agenzia: Ocupa uma das maiores alas de um dos palácios da Casa de Savoia, família real italiana. A edificação, construída em 1835 e classificada como Patrimônio Mundial pela Unesco, foi inteiramente restaurada e está situada em Pollenzo, distrito da cidade de Bra, a cerca de 13 quilômetros de Alba. O complexo é sede do movimento Slow Food, abrigando, além do hotel quatro estrelas, a Universidade de Ciências Gastronômicas; a Banca del Vino, um misto de enoteca e museu do vinho italiano; e uma filial do restaurante Guido, há 50 anos referência da requintada culinária do Piemonte, com extensa lista de vinhos a preços honestos.
• Antica Meridiana Relais Art: Embora esteja enquadrada na categoria agriturismo, sua classificação mais adequada seria uma pousada de luxo. É conduzida com muita paixão pelos proprietários, o casal Massimo Martinelli - ele se retirou em definitivo no ano passado da prestigiada vinícola Renato Ratti, que comandou por mais quase 50 anos (até 1988, em conjunto com o tio Renato Ratti, que morreu prematuramente naquele ano). Fica em Vicoforte, em torno de 40 quilômetros ao sul de Alba, mas a distância não deve ser considerada obstáculo. Massimo é uma grande figura, que conhece tudo sobre o Piemonte, podendo indicar os melhores restaurantes e lugares para visitar, assim como fazer contatos com produtores. A cinco quilômetros, em Mondovi, há um ótimo restaurante com uma estrela Michelin, o Il Baluardo.
• Villa Beccaris: Espécie de pequena e simpática vila com pátio interno e serviço atencioso. Quartos corretos e belo café da manhã, servido em uma sala envidraçada com bela vista do entorno. O melhor é sua localização, em uma ladeira a dois passos da praça central de Monforte d'Alba, zona que abriga alguns dos melhores produtores de barolo.
• Albergo Ristorante Giardino da Felicin: Localizado também em Monforte d'Alba, o hotel é pequeno e confortável, decorado com estilo tradicional. Se esse conjunto já é atraente, fica mais ainda pelo ótimo restaurante que, na verdade, é o carro-chefe do lugar. Uma referência na região, com cozinha de primeira e notável carta de vinhos que conta, inclusive, com rótulos de safras antigas.
• Hotel Barolo: Simpático, com restaurante situado no centro do vilarejo com vista para o histórico Castello di Barolo.
• Castello di Santa Vittoria: Edificação antiga, bem restaurada em um estilo clássico, ocupa posição privilegiada no alto de uma colina com vista panorâmica para a região e os vinhedos. Alguns quartos têm varanda de frente para a paisagem. A 12 quilômetros ao norte de La Morra e a 10 quilômetros de Alba. Tem restaurante.

 

Restaurantes com ótima carta de vinhos:

(além dos dois Guidos situados nos hotéis Relais San Maurizio e Albergo dell'Agenzia, do Il Baluardo e do Felicin)

• Bovio: Não por acaso encabeça a lista. Depois de ocupar por muito tempo o espaço do Belvedere no ponto mais alto de La Morra, mudou-se há poucos anos para um local de bom gosto, situado na descida que sai da cidade em direção a Annunziata. Continua irrepreensível na ótima comida clássica, no serviço e na carta de vinhos, tudo comandado pelo dono, o refinado e competente Gian Bovio. É sempre minha primeira opção.
• Locanda nel Borgo Antico, em Barolo.
• Il Centro, em Priocca d'Alba.
• La Crota, em Roddi.
• Trattoria delle Posta, em Monforte d'Alba.
• La Ciau del Tornavento, em Treiso.
• Antinè, em Barbaresco.
• Ristorante de Belbo da Bardon, em San Marzano Oliveto. Fica mais na zona de Asti, a cerca de 30 quilômetros de Alba (pouco distante do hotel Relais San Maurizio). É opção obrigatória para quem vai visitar vinícolas na região, especializadas em barbera, como Coppo, Michele Chiarlo e Braida. Cantina secular com uma das melhores e mais incríveis cartas de vinho da Itália. Tel.: 01 41 83 13 40.
• Locanda del Pilone, em Alba.
  

Restaurantes para almoço ou jantares menos sofisticados:

• L'Osteria del Vignaiolo, em Santa Maria, a quatro quilômetros ao norte de La Morra. Tel.: 017 35 03 35.
• Osteria Veglio, em Annunziata, perto de La Morra. Tel.: 01 73 50 93 41.
• Tratoria I Bologna, em Rocchetta Tanaro. Ótima cantina na região dos barberas.
• La Libera, em Alba.

Onde comprar vinho:

• Fracchia & Berchialla, em Alba.
• Grandi Vini, em Alba.

Fonte: Jorge Lucki (Valor Econômico)